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05 janeiro 2006 

Carta a um amigo - A doença de Flelipe

A história que segue é verdadeira em grande parte de seu conteúdo, tendo-se pouco acrescentado ou alterado. Aconteceu com um amigo de infância, já distante a um bom tempo, salvo ocasionais encontros não combinados. Soube dos fatos por intermédio de minha amiga Raquel, também amiga dele, uma das poucas pontes que nos mantinham relativamente informados um do outro.
Ele tinha 18 anos e era um cara legal. Gostava de aviões, sempre gostou. Seu pai, que já fora cobrador de ônibus, era advogado; sua mãe, ex-costureira, era dondoca. O garoto gostava de futebol como qualquer garoto, e quase sempre jogava no gol. Embora sua vontade fosse a de jogar de armador, sua motricidade deixava a desejar. Esse foi provavelmente o principal motivo que o levara a rodar no primeiro teste para a admissão na aeronáutica, no ano anterior. Mas naquele ano não rodaria, ele estava preparado.
Tinha estudado muito para prestar os exames. Talvez não fosse nenhum Einstein, mas tinha muita perseverança. Tinha um gênio forte esse Felipe. Era calmo, apesar de às vezes ele parecer meio lento aos olhos de uns poucos, sempre fora um bom rapaz. Faltava menos de um mês para os exames quando ele tremeu.
E tremeu literalmente. Começou com uma dor no peito, não tão forte como a dor de um infarto, mas ainda assim uma dor. Pouco depois vieram os tremores. Não conseguia controlar suas mãos, elas tremiam sem parar. Ele não conseguia comer por conta própria. Era praticamente um mal de Parkinson, só que as vésperas dos seus 19 anos. Depois de uma noite nesse estado, os pais o levaram em um médico, que disse que não era nada com o que se preocupar, era alguma doença da moda como depressão bipolar. Outro, disse-lhes a verdade, ainda que meio perplexo: não fazia idéia. Apenas no terceiro médico, um conceituado neurologista indicado por uma amiga intima, obtiveram uma resposta concreta sobre o que havia com Felipe.
Doença de Wilson. Esse era o nome dado à raríssima condição dele. Para se ter uma idéia, essa doença ocorre em apenas trinta a cada um milhão de pessoas. Felipe fora um dos sorteados. Os pais, claramente sem nenhuma noção do que viria a ser a doença (eu mesmo nunca ouvira falar dela), foram elucidados pelo doutor.
A doença consiste, disse ele, em um distúrbio no fígado, que leva a acumulação de cobre inicialmente no mesmo. Sendo muitas vezes diagnosticado como uma hepatite e tratada como tal, esse é o principal motivo de morte dos portadores. Pouco é o número de pessoas apresentam a doença, e destas o número dos que chegam a descobrir a doença ainda em vida é ínfimo. Sei que isso não pode ser chamado de “tirar a sorte grande”, mas ter conhecimento da doença é ao menos uma benção menor. Após algum tempo, o cobre passa a se acumular em outros diversos locais pelo corpo. Um deles é nos olhos, entre a parte branca e a colorida. Ali se forma, como se pode notar no seu filho, um círculo de cor cobre chamado Anel de Kayser-Fleisher. Outro local de acúmulo, certamente o mais danoso, é no cérebro. O cobre acaba danificando funções motoras e muitas mais. Sim senhora. Lamento dizer que esse é o caso de Felipe...
A mãe de Felipe desatou a chorar. O pai a abraçou firme, porem internamente em frangalhos. O doutor tranqüilizou-os dizendo que havia chances. Que doença podia ser combatida e que a vida do jovem não estava perdida. Infelizmente a conhecimento possuído pelo doutor em neurologia era muito superior que o em relações interpessoais, e cada colocação agravava mais o desespero do casal. Finalmente calou e esperou. Quando tudo se acalmou o doutor falou novamente. Eles saíram de lá com um remédio raro e, por conseguinte, caro para seu filho. Tristes, porém esperançosos.
Passaram alguns dias sem que o jovem doente tivesse uma grande recuperação. Aumentaram a dosagem do remédio. Havia outros remédios a serem dados sem dúvida, mas esse era o único disponível. Os outros, existentes apenas no exterior, nos países mais desenvolvidos, custavam fortunas de intimidar os quadros de Monet ou um pouco menos. Dá-se um jeito; dizia o pai do garoto à própria mulher, exaurida de forças. Mas isso obviamente não foi tudo. Os caminhos tortuosos do destino reservam muitas surpresas além da compreensão de qualquer humano, limitado como é.
No fim de semana posterior ao aumento da dosagem do remédio, Felipe saiu com os amigos. Tinha tudo para ser uma saída normal, nada digna de redondilhas, não obstante sempre há um imprevisto. Não sei se nas horas mais avançadas da noite, ou mesmo na tarde dominical. Sei que houve uma briga.
Uma briga? Estranhei quando Raquel me contara a história. Felipe nunca fora briguento. Rapaz calmo, já disse anteriormente. Não se meteria em briga nenhuma à toa. E realmente não se meteu, meteram-no.
Provavelmente devido a alguma discussão de algum de seus amigos com um membro de outro grupo, iniciada por motivos obscuros a mim, mas, ao que tudo indica, pelo grupo adversário. Ainda no início da briga ocorreu a catástrofe. Um dos jovens salta, e com uma ou duas patas acerta o inocente no peito. Com a coordenação já fraca e devido ao forte impulso, Felipe cai. Quisera eu fosse uma queda banal, e que ele voltasse para casa pela polícia que com sorte acabaria intervindo na confusão. Claro que a sorte não estava ao lado de Felipe nos últimos dias.
Quando caiu, bateu a cabeça. O paralelepípedo que limitava a rua onde eles estavam abriu um rombo na cabeça do jovem. O sangue e o susto cessaram a briga. Os amigos do atingido chamaram uma ambulância. Traumatismo craniano. Quando souberam, os pais correram ao hospital sem nem mesmo pensar, apenas para achar o filho em coma, semiprofundo. Só após assegurar que Felipe tinha o melhor que a cidade, terceira capital mais importante do país, podia oferecer é que os pais tiveram tempo para sentir a dor. Não, não posso formular descrição para tamanha dor e espero nunca poder.
Pouco depois um sorriso estampou-se, ainda que por não muito tempo, no rosto do casal. Seu querido havia acordado. Claro, ele ainda tinha um hematoma enorme na cabeça, uma elevação sensível que devia estar entre seis e 21 centímetros. Ele dizia coisas horríveis na mesma proporção que dizia maravilhas, ambas com a honestidade que não seria extraída do melhor dos atores das tragédias gregas. Fossem verdade ou não, pareciam. Ai, que bom que tu veio, dizia ele, me dá um beijo? Pouco depois gritava, a plenos pulmões: Sai daqui! Eu te odeio! E assim ia do eu te amo ao tu é a pior mãe do mundo. E assim passou o natal com a sua família, no seu quarto branco. Obviamente, muitas dentre as coisas por ele ditas não eram seus reais sentimentos. Tudo coisa da cabeça dele, com o perdão da expressão. É compreensível, no entanto. Ele tem uma doença raríssima acumulando cobre na cabeça dele, essa que levou a pior em um embate com o chão. Muitas das funções no cérebro estão desordenas.
Esse é seu atual estado. Não é o melhor que já esteve, mas está se recuperando da última lesão. Diante disso tudo muitos, incluindo a mim e certamente os pais de Felipe, questionaram coisas como: Porque, meu Deus? É justo isso? Como tantas coisas más ocorreram em tão pouco tempo com alguém tão merecedor de bondade? Existirá algo de bom para compensar todo o mal? Será que ele vai melhorar?...
Eu, em minha insignificância, só posso desejar as mais sinceras melhoras.

janeiro de 2006
com carinho, Lucas Chando Nunes Soares

eu to com medo desse texto, e é sério.

Queri olhe http://lettrespourdieu.blogspot.com/


que triste teu texto =/

entrei buscando algum conforto pra minha dor,sou esposa de portador de Parkinson, tenho 57 anos e há 3 anos vivo esperando um milagre.Não estava preparada pra isso.Mas ao ler seu texto, lembrei dos filhos e netos saudáveis que temos e do desespero desses pais.Senti-me tão egoista...

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