30 janeiro 2006 

Ingênuo

Porque a gente cresce?
Porque a gente fica gripado?
Porque a noite cai?
Porque ninguem segura ela?
Porque papai
Separou-se da mamãe?
Porque a gente chora?
Porque que a água molha?
A aha.
Me diz.

Porque agente é pobre?
Porque não tem comida?
Daonde vêm os anjos?
Será que eu vou ser um um dia?
Porque que eles fazem
Se é covardia?
Porque que eu não entendo
Quando falam de poesia?
A aha.
Me diz.

Porque a casa é pequena?
Porque não é tijolo?
O que que é safena?
Porque que eu não vôo?
Porque em cima do muro?
Porque da solidão?
Porque o mundo é escuro
No algo lá quistão?
A aha.
Me diz.

Porque que agente sabe
Que um dia agente morre?
Como é que luz acende?
Como é que o prédio explode?
Porque que eles roubam
Sentados no dinheiro?
Pra isso agente existe?
Quando é que é o recreio?

Quando é que é o recreio?
Me diz...

25 janeiro 2006 

Pulinhos

José Almeida Campos morava num bloco residencial no centro da cidade com sua mulher e, como todas a grande maioria das pessoas que moram em locais predominantemente urbanos, tinha vizinhos. O homem que morava no apartamento da frente chamava-se Dagoberto, que tinha lá seus cinqüenta anos. Os dois, como bons vizinhos, se encontravam e sempre se cumprimentavam. E José sempre dizia algo como “E o nosso time, hein” ou “Qualquer dia o senhor tem que ir num jogo comigo seu Dagoberto” e o homem sempre respondia “Quem sabe, quem sabe”. Gostavam de futebol, ambos. É claro que gostavam de futebol, eles eram brasileiros ora bolas! E isso no tempo que Michel Jackson era negro e que não existiam homens que não gostassem de futebol no Brasil, a exceção de alguns estrangeiros.
Acontece que um dia, numa quarta feira para ser mais preciso, Dagoberto bateu na casa do seu vizinho. “O José, tu vais ir ao jogo hoje?” “Claro, to saindo daqui a pouquinho, quer ir junto seu Dagoberto?” “Opa, deixa só eu pegar minha japona rapaz”. E Assim foram os dois ao jogo do time que aprenderam a gostar com seus pais, o Invenhauto.
Durante o jogo, Dagoberto tinha uma expressão estranha no rosto, como se quisesse falar alguma coisa importante e não soubesse como. José se preocupava, achava que tinha algo a ver com o fato de seu vizinho ter perdido a mulher não fazia nem seis meses, mas não se atrevia em tocar no assunto com um homem tão sisudo e polido como ele. Naquele tempo o estádio do time Invenção Do Autor Futebol Clube era ainda em um local ainda muito úmido, de barro pastoso. Volta e meia tinha um valão, um seguimento sem terra, que os torcedores tinham que pular para chegar ao estádio. No fim o jogo empata, e os dois vão saindo do estádio quando se deparam com um desses denominados valões. José, vinte ou trinta anos mais novo que seu parceiro de arquibancada, apressa-se em pular e estender a mão. Dagoberto nem olha para a mão e pula, ainda que com alguma dificuldade, o buraco. Surpreso com tamanha agilidade em alguém tão velho (naquela idade José achava que alguém com 55 anos ou mais era um ancião), disse-lhe “Mas o senhor ainda dá seus pulinhos em seu Dagoberto?”. Dagoberto encheu-se de alegria. Era ali, naquele momento. “Rapaz, tu sabe que tem uma moreninha lá naquela rua, tão bonitinha. Ela me espera sempre as terças feiras, de banho tomado e tudo. Já faz mais de um ano e ela continua cobrando baratinho, mas é uma tetéia de menina”. Imediatamente a expressão de ansiedade de Dagoberto transformou-se em um sorriso de satisfação.

17 janeiro 2006 

Cochilo

Ele voltava do trabalho, um emprego de meio turno em uma locadora de vídeo que usava para pagar a faculdade. Estava no terceiro semestre de botânica, e no ônibus. Preocupado com um trabalho sobre a germinação das pteridófitas em estufas que ele tinha que entregar na sexta-feira. Faltavam dois dias, e ele prestava pouca atenção no ambiente ao seu redor, principalmente por estar cansado da rotina trabalho-faculdade. Foi quando ela entrou.
Morena, de pele e cabelo, não era muito alta, tampouco era baixa. Saia jeans e pernas bem encorpadas. Uma blusinha, sem magas, colada ao corpo. Busto redondo, simetria perfeita. Ombros não largos, caminhar intimidante, braços formosos. E claro, a preferência nacional se acentuava, sem ser desproporcional ao resto ou tornar-se excesso. Um tesão. Quando ela se virou depois de passar pela roleta ele pode ver sua face. Por um segundo, esqueceu-se do desejo animal de possuí-la e viu-se consumido por um fogo morno de amor. Pouco depois, obviamente, o instinto voltou e ele uniu o útil ao agradável. Passaria com ela o resto da vida se lhe fosse pedido.
No entanto, era um rapaz tímido. Ela tinha que dar o primeiro passo, e ele logo perdeu as esperanças. Ele, magrelo, estranho e com uma pasta onde se lia “botânica”, não via chances. Ainda mais com o ônibus lotado e aquela gorda sentada ao lado. Voltou a sua ocupação anterior, entediar-se, após ver ela parada de pé com alguma dificuldade ao lado de um banco mais à frente. Logo, entregue ao marasmo de olhar o mesmo caminho que sempre fazia para voltar da locadora, cochilou. Por pouco tempo, aquelas piscadelas de cansaço que as pessoas dão no ônibus e acordam quando suas cabeças começam a pender fingindo que nada aconteceu e voltando a fechar os olhos em seguida. Pois é, acontece que ele não acordou quando sua cabeça começou a pender para frente, mas instantes depois. Não com o movimento, como seria de costume, mas com a parada brusca dele ao encontro da cabeça com o encosto do banco da frente. Ouviu uma risada abafada ao lado dele, estava pronto pra dar o seu melhor olhar fulminante e dizer um bocado de desaforos para aquela obesa nojenta de cem ou mais quilos, mas acabou estático diante da visão do rosto para o qual jurara amor eterno, em segredo, pouco antes.
Pouco? Quanto ele tinha dormido? Ela esboçou um sorriso encabulado por ter rido da situação dele. Ele ainda mais corado retribuiu o sorriso, percebendo com isso o pouco de baba que se juntara num dos cantos da boca. Mais encabulado ainda se limpou, e olhou rápido para a janela atrás dela. Não tinha dormido muito não, ainda restava um longo caminho pela frente. Não podia descer e esperar outro ônibus, pois demoraria uma eternidade, tampouco descer ali e ir caminhando, por mesma razão. O jeito era encarar. Ele esperava que ela não conversasse com ele, olhasse para o outro lado, e ele faria o mesmo, e estava resolvido, ela nunca saberia que ele era tímido. “Acontece né?” Ela disse. E assim estava dado o primeiro passo.
Timidamente (como tinha vergonha de ser tímido!) ele respondeu que sim. Ela perguntou se ele fazia botânica, por causa da pasta. Ele afirmou e recebeu, com surpresa, o interesse que ela demonstrou pela área. Ela estava cursando psicologia, e estava ainda nos primeiros semestres. Ele sempre gostou de psicologia, ou pelo menos sempre a partir daquele momento. Citou tudo que sabia de filmes considerados “psicológicos”, ou qualquer coisa assim. Ela adorava filmes, e para alguma coisa serviu a maldita experiência na locadora. Ela explicou-lhe suas ambições como psicóloga, sobre viagem que queria fazer à França para o mestrado. Ele morava descendo no fim da linha do ônibus, ela, uma parada antes. Despediram-se, ela desceu. Ele desceu, foi pra casa.
Bateu com a mão forte na testa e tirou o sorriso dos lábios quando chegara ao seu pequeno prédio. O telefone! Ele não havia pedido o telefone dela. Ainda demorou a dormir, pensando naquele encontro. Talvez a visse amanhã...

05 janeiro 2006 

Carta a um amigo - A doença de Flelipe

A história que segue é verdadeira em grande parte de seu conteúdo, tendo-se pouco acrescentado ou alterado. Aconteceu com um amigo de infância, já distante a um bom tempo, salvo ocasionais encontros não combinados. Soube dos fatos por intermédio de minha amiga Raquel, também amiga dele, uma das poucas pontes que nos mantinham relativamente informados um do outro.
Ele tinha 18 anos e era um cara legal. Gostava de aviões, sempre gostou. Seu pai, que já fora cobrador de ônibus, era advogado; sua mãe, ex-costureira, era dondoca. O garoto gostava de futebol como qualquer garoto, e quase sempre jogava no gol. Embora sua vontade fosse a de jogar de armador, sua motricidade deixava a desejar. Esse foi provavelmente o principal motivo que o levara a rodar no primeiro teste para a admissão na aeronáutica, no ano anterior. Mas naquele ano não rodaria, ele estava preparado.
Tinha estudado muito para prestar os exames. Talvez não fosse nenhum Einstein, mas tinha muita perseverança. Tinha um gênio forte esse Felipe. Era calmo, apesar de às vezes ele parecer meio lento aos olhos de uns poucos, sempre fora um bom rapaz. Faltava menos de um mês para os exames quando ele tremeu.
E tremeu literalmente. Começou com uma dor no peito, não tão forte como a dor de um infarto, mas ainda assim uma dor. Pouco depois vieram os tremores. Não conseguia controlar suas mãos, elas tremiam sem parar. Ele não conseguia comer por conta própria. Era praticamente um mal de Parkinson, só que as vésperas dos seus 19 anos. Depois de uma noite nesse estado, os pais o levaram em um médico, que disse que não era nada com o que se preocupar, era alguma doença da moda como depressão bipolar. Outro, disse-lhes a verdade, ainda que meio perplexo: não fazia idéia. Apenas no terceiro médico, um conceituado neurologista indicado por uma amiga intima, obtiveram uma resposta concreta sobre o que havia com Felipe.
Doença de Wilson. Esse era o nome dado à raríssima condição dele. Para se ter uma idéia, essa doença ocorre em apenas trinta a cada um milhão de pessoas. Felipe fora um dos sorteados. Os pais, claramente sem nenhuma noção do que viria a ser a doença (eu mesmo nunca ouvira falar dela), foram elucidados pelo doutor.
A doença consiste, disse ele, em um distúrbio no fígado, que leva a acumulação de cobre inicialmente no mesmo. Sendo muitas vezes diagnosticado como uma hepatite e tratada como tal, esse é o principal motivo de morte dos portadores. Pouco é o número de pessoas apresentam a doença, e destas o número dos que chegam a descobrir a doença ainda em vida é ínfimo. Sei que isso não pode ser chamado de “tirar a sorte grande”, mas ter conhecimento da doença é ao menos uma benção menor. Após algum tempo, o cobre passa a se acumular em outros diversos locais pelo corpo. Um deles é nos olhos, entre a parte branca e a colorida. Ali se forma, como se pode notar no seu filho, um círculo de cor cobre chamado Anel de Kayser-Fleisher. Outro local de acúmulo, certamente o mais danoso, é no cérebro. O cobre acaba danificando funções motoras e muitas mais. Sim senhora. Lamento dizer que esse é o caso de Felipe...
A mãe de Felipe desatou a chorar. O pai a abraçou firme, porem internamente em frangalhos. O doutor tranqüilizou-os dizendo que havia chances. Que doença podia ser combatida e que a vida do jovem não estava perdida. Infelizmente a conhecimento possuído pelo doutor em neurologia era muito superior que o em relações interpessoais, e cada colocação agravava mais o desespero do casal. Finalmente calou e esperou. Quando tudo se acalmou o doutor falou novamente. Eles saíram de lá com um remédio raro e, por conseguinte, caro para seu filho. Tristes, porém esperançosos.
Passaram alguns dias sem que o jovem doente tivesse uma grande recuperação. Aumentaram a dosagem do remédio. Havia outros remédios a serem dados sem dúvida, mas esse era o único disponível. Os outros, existentes apenas no exterior, nos países mais desenvolvidos, custavam fortunas de intimidar os quadros de Monet ou um pouco menos. Dá-se um jeito; dizia o pai do garoto à própria mulher, exaurida de forças. Mas isso obviamente não foi tudo. Os caminhos tortuosos do destino reservam muitas surpresas além da compreensão de qualquer humano, limitado como é.
No fim de semana posterior ao aumento da dosagem do remédio, Felipe saiu com os amigos. Tinha tudo para ser uma saída normal, nada digna de redondilhas, não obstante sempre há um imprevisto. Não sei se nas horas mais avançadas da noite, ou mesmo na tarde dominical. Sei que houve uma briga.
Uma briga? Estranhei quando Raquel me contara a história. Felipe nunca fora briguento. Rapaz calmo, já disse anteriormente. Não se meteria em briga nenhuma à toa. E realmente não se meteu, meteram-no.
Provavelmente devido a alguma discussão de algum de seus amigos com um membro de outro grupo, iniciada por motivos obscuros a mim, mas, ao que tudo indica, pelo grupo adversário. Ainda no início da briga ocorreu a catástrofe. Um dos jovens salta, e com uma ou duas patas acerta o inocente no peito. Com a coordenação já fraca e devido ao forte impulso, Felipe cai. Quisera eu fosse uma queda banal, e que ele voltasse para casa pela polícia que com sorte acabaria intervindo na confusão. Claro que a sorte não estava ao lado de Felipe nos últimos dias.
Quando caiu, bateu a cabeça. O paralelepípedo que limitava a rua onde eles estavam abriu um rombo na cabeça do jovem. O sangue e o susto cessaram a briga. Os amigos do atingido chamaram uma ambulância. Traumatismo craniano. Quando souberam, os pais correram ao hospital sem nem mesmo pensar, apenas para achar o filho em coma, semiprofundo. Só após assegurar que Felipe tinha o melhor que a cidade, terceira capital mais importante do país, podia oferecer é que os pais tiveram tempo para sentir a dor. Não, não posso formular descrição para tamanha dor e espero nunca poder.
Pouco depois um sorriso estampou-se, ainda que por não muito tempo, no rosto do casal. Seu querido havia acordado. Claro, ele ainda tinha um hematoma enorme na cabeça, uma elevação sensível que devia estar entre seis e 21 centímetros. Ele dizia coisas horríveis na mesma proporção que dizia maravilhas, ambas com a honestidade que não seria extraída do melhor dos atores das tragédias gregas. Fossem verdade ou não, pareciam. Ai, que bom que tu veio, dizia ele, me dá um beijo? Pouco depois gritava, a plenos pulmões: Sai daqui! Eu te odeio! E assim ia do eu te amo ao tu é a pior mãe do mundo. E assim passou o natal com a sua família, no seu quarto branco. Obviamente, muitas dentre as coisas por ele ditas não eram seus reais sentimentos. Tudo coisa da cabeça dele, com o perdão da expressão. É compreensível, no entanto. Ele tem uma doença raríssima acumulando cobre na cabeça dele, essa que levou a pior em um embate com o chão. Muitas das funções no cérebro estão desordenas.
Esse é seu atual estado. Não é o melhor que já esteve, mas está se recuperando da última lesão. Diante disso tudo muitos, incluindo a mim e certamente os pais de Felipe, questionaram coisas como: Porque, meu Deus? É justo isso? Como tantas coisas más ocorreram em tão pouco tempo com alguém tão merecedor de bondade? Existirá algo de bom para compensar todo o mal? Será que ele vai melhorar?...
Eu, em minha insignificância, só posso desejar as mais sinceras melhoras.

janeiro de 2006
com carinho, Lucas Chando Nunes Soares