02 dezembro 2006 

Filé ao alho e óleo

Pai e filha estão no meio de um jantar. Ele cozinhou um prato especial para aquela noite. Noite de quarta-feira, noite especial, noite da semana em que a filha sempre janta com o pai. Ele não trabalha muito. Ela trabalha demais, sai demais, tem amigos demais, amigas demais. O pai tem alguns velhos amigos. O suficiente, ele sempre diz quando questionado por que não faz novas amizades. Novas amizades nem sempre são fáceis para alguém em seus quarenta e dois anos. As pessoas não se abrem tão facilmente, não como quando tinham dezoito. A filha tem dezoito, ela tem muitos amigos, e muito mais amigas ainda. É fácil na idade dela. Mais que depois dos quarenta.

Ele cozinhou algo especial para aquela noite, noite de quarta-feira, a noite deles. Filé grelhado ao alho e óleo, com alcaparras. Batata frita para acompanhar, embora ele tivesse pensado em batata sauté. Desistiu da idéia. Não que ela não gostasse de batata sauté, adorava, mas o pai era especialmente chato e comia batatas apenas fritas. Ele amava a filha, mas não abriria mão das batatas fritas.

A filha tinha algo a dizer ao pai. Algo importante, algo grande, algo que mudaria a vida dele. Talvez não tanto quanto o fato da mãe dela ter morrido quando ela tinha sete anos. Mas isso foi um acidente de percurso. O que a filha tinha que falar não era um acidente. Simplesmente era.

Ela estava visivelmente nervosa. Ele procurou disfarçar que não percebeu, mas em algumas coisas ela era exatamente igual à mãe dela. O jeito como perdia um pouco da fome quando ficava nervosa, o jeito de separar a comida no prato para parecer que está realmente comendo. É o prato favorito dela, ela deveria comer todo ele antes mesmo do pai acabar (o que é um grande feito, visto que o pai é bem maior que ela, vertical e horizontalmente), era óbvio que ele estava ciente do nervosismo da filha. Ela nem tinha tocado nas batatas! Mas ele não queria apressá-la, ela que levasse o tempo que quisesse. Enquanto isso eles comentavam sobre futebol, coisa que a filha entendia muito mais que o pai por sinal. Ela ia a vários jogos. Ele foi com ela algumas vezes, teve até medo dela depois de vê-la xingando. Parecia um homem de 25 anos que acabou de acabar com a namorada e brigar com seus pais descarregando toda raiva num jogo. Ele realmente teve medo. Até que finalmente, ela resolveu falar:

-Pai, eu preciso te falar uma coisa.
-É eu sei.
-Uma coisa importante... -Ele murmurou algo parecido com um “aham” antes de ela continuar.
-Sabe o que eu vou falar?
-Claro que não, acha que eu sou vidente ou algo assim?
-É que você estava agindo como se soubesse.
-Sei que tem algo a dizer, você é igual a sua mãe, mal tocou na comida.

Ela sorri meio acanhada. Gosta de ser comparada com a mãe, especialmente quanto à beleza, seu pai sempre diz que a sua mãe era a mais linda das mulheres na terra, mas que daí ela chegou e estragou tudo, e sua mãe passou a ser a segunda mais linda. Ela sempre achou aquilo tudo muito meigo. E era bom para o ego também. Ela continuou:

-Pai, o que eu tenho a dizer é... Acho melhor o senhor parar de comer para ouvir isso
-Oh meu Deus, você está grávida! É por isso que não tocou no seu prato favorito! -Disse ele com espanto.
-Não pai, eu não estou grávida. De fato, isso seria bem estranho visto que não durmo com nenhum dos garotos que saio, e a maioria deles é gay.
-Oquei, então o que é?
-Não vai parar de comer?-perguntou a filha
-Eu nunca paro de comer, porque você acha que minha barriga é desse tamanho?
-Oquei, oquei, vou falar. Pai... Eu sou lésbica.

Ele ficou em silêncio por um momento. O pedaço de carne em sua boca parou de ser mastigado por um instante.

-Pai? -Perguntou ela. Ele voltou a mastigar, e depois engoliu e respondeu.
-Oquei, é só isso?
-Como assim “só” isso?
-Graças a Deus, pensei que fosse algo mais sério.
-Pai, isso é sério.
-Claro que é. Me passa a pimenta?
-Você não vai falar nada?-pergunta ela intrigada.
-Olha, filha -responde ele meio sem jeito, sorrindo- Eu não preciso dizer nada. Eu quero que você seja feliz e é isso o que mais importa. Se for ao lado de uma mulher, que seja, não me importo nem um pouco. De fato, até prefiro isso a ficar pensando “esse filho da puta esta comendo minha garotinha” cada vez que eu olhar para um cara com quem você sair.
-Mas o senhor sempre disse que queria netos.
-Bom, você ainda pode ter netos. Existe adoção, inseminação artificial, ou até pode chamar algum amigo gay seu para fazer o serviço e se mandar. Só não mude de time de novo ou sua parceira vai ficar uma fera.
-Pai!
-Que? Só estou dizendo, que se você quiser passar o resto da sua vida com uma mulher, ou mesmo só dar uns amassos, eu não tenho problema nenhum nisso. De fato, eu mesmo adoro dar uns amassos com uma mulher, porque minha filha não gostaria?

Fez-se silêncio por um instante. Ela deu um sorriso que ele fingiu que não viu. Ele pegou a pimenta ele mesmo e botou no resto de seu filé. Cortou um pedaço e botou na boca no exato instante que ela começou a falar.

-Pai? –Ele respondeu com um gesto indicando que ela continuasse. –Isso realmente significa muito pra mim, pai. Obrigada. -Disse ela sorrindo. Ele demorou pra responder. Os olhos vermelhos, mal conseguia conter as lágrimas.
-Oquei, agora me alcance aquele vinho minha pequena. Eu acho que essa pimenta é meio forte para o seu velho pai.

Quase não conseguiu terminar a frase, a felicidade de ver o sorriso nos lábios da filha, o sorriso vermelho igual ao da mãe, o sorriso mágico. Ele faria qualquer coisa no mundo por aquele sorriso.
Sempre.