12 maio 2006 

Ato um: O homem (ou o frio)

Tarde fria. O vento carrega as folhas pálidas para longe de suas mães e seca as lágrimas dos que choram. Um homem bem vestido caminha apressado...

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Na rua há um homem. Muitos não o chamariam de homem. Ele usa poucas roupas. Trapos sujos e rasgados. Esse sente muito frio. Os braços se apertam ao redor do corpo em um abraço. Tentativas inúteis de se proteger do inverno. Alguém havia dito para o homem caminhar; se não morreria. Era uma tarde realmente fria. Ele balbuciava palavras incompreensíveis. Se sua mente já havia sido sã um dia, esta visivelmente não o era agora.

Em seus delírios, chegou ao meio da rua. Quase fora atropelado por um ônibus que passava. Ele fez sinal para que o ônibus parasse, como qualquer pessoa em uma parada de ônibus faria. Talvez ele estivesse apenas repetindo o ato que ele mais via, afinal ele morava em paradas. A única diferença do seu sinal para o dos outros era que o homem o fazia no meio da rua, razoavelmente distante da parada de ônibus. Quase perdeu a vida na freada brusca que o motorista do veículo foi obrigado a dar. Não que o motorista se importasse com a vida daquele louco, atropelá-lo seria muito mais fácil para ele, já que volta e meia o pobre coitado se atravessava na rua e causava algum acidente. Nada grave, mas atrasava-o. E ele tinha de cumprir o itinerário.

Será que esse louco se importa com vida? Perguntou um velho a si mesmo em voz baixa. Com certeza que não, respondeu-lhe o cobrador a se intrometer. Alguma coisa naquele velho dizia-lhe que o cobrador estava errado.

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O homem bem vestido estava quase chegando ao seu destino. Roberto, esse era o nome do homem. Parada de ônibus, este era o destino. Ia se encontrar com dois amigos para tratar de negócios que tinham em conjunto. Velhos amigos, velhos pensadores. Estava com um pouco de tempo sobrando, sempre chegava antecipado nos lugares nunca gostou de atrasos. Além do que, morava perto dali e não havia nada mais interessante há fazer em casa. Estava quase chegando quando algo desviou sua atenção...

Um homem, com aparência muito mais próxima de um animal do que de um ser humano, se escora em uma árvore. Barba e sobrancelhas grossas, pêlos. Olhar distante e braços magros. O homem-animal se abraça e encolhe as juntas. Cada um sobrevive com o que tem, pensou Roberto. Virou a cara como todos os outros transeuntes que por ali passaram antes dele, seguiu seu caminho e tentou desviar o pensamento disso o mais rápido possível. Então aconteceu.

Roberto caiu. Não simplesmente caiu. Tomou um tombo do jeito mais bonito que alguém pode tomar. Tinha ele as duas mãos nos bolsos, os olhos voltados para o alto e a cara esparramada na areia. Não bastasse a humilhação do fato por si só, ainda ouvira alguma criança gargalhando, apontando e dizendo bem alto: Olha mamãe, que babaca! Os risos contidos de todos os outros que estavam na rua ele não ouvia, mas imaginava-os com perfeição. Até aquele indigente deveria ter saído do seu transe para soltar uma pequena gargalhada inaudível com as poucas forças que ele tinha e... Ele interrompeu seu pensamento quando sentiu uma mão segurando seu braço, ajudando-o a levantar. Ele olhou a mão magra, suja e áspera em seu casaco. Não era necessário ser um gênio para reconhecer o único dono possível para aquela mão. Saia daqui seu miserável, eu sei muito bem levantar sozinho!

Somente após as palavras proferidas por ele atingiram os ouvidos do homem é que ele se deu conta do que havia dito. Olhou o pobre homem afastando-se lentamente, de costas. Tremia de frio. Usava uma calça, que de tão rasgada Roberto cogitava se não seria melhor usar bermudas. Algo que lembrava um sapato, sem dúvidas de um número inapropriado. Um simples moletom, velho e sujo. Um animal vestido. Nada mais. Ele era somente um animal vestido. E muito mal vestido.

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Dois homens, amigos de Roberto, chegam no local determinado. Ao verem o terceiro ao longe com seu indistinguível sobretudo azul-oliva agachado perto de uma árvore resolvem ir ao seu encontro. Mal sabem eles o que estão para ver...

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Roberto vê o pobre animal sentar-se novamente em seu lugar. Aquele era o seu lugar, o de animal. Roberto pensou o quanto isso estava errado. Aquele pobre ser não sobreviveria até a próxima estação sem alguma ajuda. Que alguém o ajude oras! Mas quem? Ele mesmo havia acabado de rechaçar o coitado. Tudo porque fora burro de cair, e não queria ajuda de nenhum mendigo sujo para levantar. Que ignorância, pensou ele. Pôs-se ao encontro do indigente.

O sujeito fraco e faminto não prestou atenção à aproximação de Roberto. Continuava estático, exceto pelas tremidas do frio vez por outra. O olhar, perdido em alguma coisa que os sãos provavelmente não saberiam reconhecer, exatamente do mesmo jeito que estava quando Roberto o olhara pela primeira vez. Tão perdido em sua própria realidade que quase se assustou quando viu Roberto em pé na sua frente. Roberto falou.

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Hei, você. Olha, desculpa pelo que aconteceu. Eu fiquei nervoso com o riso das pessoas e... Você ao menos está me ouvindo?

O mendigo não esboçava qualquer reação, a não ser olhar para Roberto com os mesmo olhos perdidos.

Bom, eu queria ajudar, você esta precisando de alguma coisa?

Que pergunta idiota, pensou Roberto. É óbvio que ele está precisando de alguma coisa... Tudo! Roberto lembrou que não trazia consigo muito dinheiro, e que ia se encontrar com os colegas logo em seguida. O homem nada lhe respondia. Roberto olhou com pena para aqueles olhos perdidos. Pena que aqueles olhos nunca pediram, nem mesmo quiseram. Após alguns instantes, ele viu o dono dos olhos tremer de frio.

É isso, disse ele para si mesmo. Agachou-se sobre os calcanhares e começou a tirar o sobretudo azul-oliva. Era seu maior legado, ele adorava aquele sobretudo. Cobriu o mendigo com seu casaco, e este se encolheu dentro do casaco aconchegante. Roberto era visivelmente maior que o mendigo subnutrido, sorte do mendigo, que ganhava um cobertor com lugar para os braços. Roberto ainda falou: No bolso de dentro, há vinte reais. Você vai precisar mais do que eu, faça bom proveito. O pobre homem não acreditava muito, mas tinha acontecido. Ele estava um pouco mais aconchegante. Pelo menos essa noite, devia dormir bem...

Roberto foi se afastando apressado, sentindo de leve o frio que fazia fora do seu, agora do mendigo, casaco. Olhava o chão, sentia-se satisfeito. Era o melhor homem do mundo, na sua distorcida visão. Foi quando foi interceptado no meio do caminho pelos amigos.

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Os dois amigos, incrédulos, perguntaram para ele quase que ao mesmo tempo?

-Você deu seu sobretudo para aquele mendigo?!
-Sim, sim. Vamos indo.
-Mas era seu casaco preferido! E era lindo também...
-É, tu vê só.
-Podia ter dado pra mim então.
-O mendigo vai fazer mais proveito do casaco do que você.
-Mas o ele era extremamente caro!
-Escuta aqui, o dinheiro é seu? O sobretudo é de algum de vocês dois? Não. O dinheiro é meu, o casaco é meu e eu faço deles o que eu quiser oquei? Estamos entendidos?
-Sim, mas...
-Ótimo, e não se fala mais nisso...

Os dois amigos estavam abismados com o comportamento de Roberto. Justo ele que sempre fora tão materialista. Ele nunca havia feito caridade, nem mesmo comprado uma bala de goma de um garotinho em uma parada de ônibus. Aquilo era para eles, no mínimo, estranho...
Roberto não poderia se sentir melhor. Sentia-se a mais louvável das criaturas. O próprio filho de Deus. E como se não bastasse ter feito esse ato de bondade incomensurável, pensava ele, ainda havia aparecido como nobre e generoso aos seus amigos. Dera-lhes uma lição de moral. Como era bondoso. Era sem dúvida um excelente homem esse Roberto.

 

Ato dois: Animais

Não demorou muito mais a escurecer. Inverno. Ao cair da noite, o velho homem-animal deliciou-se ao comer um prato feito, ali perto. Pediu para levar, tudo, e pôde comer aos poucos longe do bar, onde não era bem quisto. Três bares enxotaram-no antes, como animal. Esse tinha um bom dono até, deixou ele comer se pagasse antes e levasse as cosias para comer bem longe dali. Como animal.

Também como animal ele comeu, sem talheres, muito aos poucos. Também pudera, com o estômago do tamanho de uma ervilha, não poderia empanturrar-se. Nem queria, sabia ele que se seu estômago aumentasse de tamanho a fome também aumentaria, e ele devi estar preparado para os dias depois que o dinheiro do homem que comeu areia lhe dera acabar. Ele pode ter pensado em tudo isso, ou pode ter apenas seguido o instinto e guardado para mais tarde. Animal, apesar de homem.
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Como todos sabem, existe na natureza uma cadeia. Alguém é predador de alguém, sempre. Conforme a noite ia e o frio chegava, o habitat do homem-animal era preenchido por tipos estranhos de predadores. Eles eram chamados: Jovens. Digo estranho porque eles têm caças variáveis, conforme a situação.

Os jovens muitas vezes são predadores de outros jovens. Eles caçam uns aos outros, de maneira que só os fortes conseguem perpetuar a espécie. Ou mais burros. Mas mais freqüentemente eles são predadores deles próprios. Nesse caso, o fim de um jovem acontece por ele acabar com sua vida aos poucos, ou rapidamente, através de uma de um processo autodestrutivo. Mas, além disso, esses predadores estranhos às vezes escolhem outras presas. Esse era um desses dias.

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Um grupo de jovens caminha pela rua onde se encontra o homem-animal e seu casaco azul-oliva. Eles percebem a presa depois que está já os havia percebido, enquanto cantarolavam hinos de louvor ao vinho. Arisco, o vestido de azul-oliva está quieto em sua parede. Observa com o canto dos olhos jovens que estão vestidos para a caça, todos de preto. Ao notarem ele com um bom sobretudo, começam a aproximação. O que parece ser o líder do bando vocifera: Bem o que temos aqui, bonito casaco cara. O desumano há muito sem receber um elogio, surpreende-se, e acena a cabeça levemente quase sorrindo. Posso ver? Arisco, encolhe-se o animal. Um olhar maligno apossasse do líder.

Num piscar o bando, seis ao todo, está desprovendo o animal de seu casaco e deixando-o exposto. Com o sobretudo vestido, um deles olha para as embalagens de alumínio, duas, no chão perto animal. Isso é sua comida? Chutes espalham pedaços de carne, salada e arroz pela calçada. Uma lágrima escorre pela pele grossa do animal, que tenta impedir e é rechaçado a pancadas, como quando lhe tiraram o azul-oliva. E então os predadores sentem o prazer. Batem mais e mais. Param apenas quando o animal, sem forças, sangra na calçada a beira de um colapso.

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Os pássaros cantavam quando o sol baixo acordou o quase morto. Sem êxito, tentou comer um pouco do que havia sobrado pelo chão, arrastando-se e tentando enfiar comida a comida na boca. Quase nada comeu. A dor não lhe permitia mastigar direito, as baratas e os ratos, bem como os cachorros de rua e outros animais carniceiros haviam levado quase tudo do que fora espalhado. E ele ainda sangrava...

03 maio 2006 

O homem dela

Entrou como entra um ladrão pela porta dos fundos. Se a mulher soubesse que tinha passado a noite fora bebendo lhe arrancaria... É, aquilo. Ingenuidade achar que ela não acordaria. Ingenuidade pura. Era ingênuo. Ela acordou.
O que você fazia chegando em casa essa hora, ela indagou. Ele fingiu-se rápido de sonâmbulo, enquanto pensava em algo para dizer, que não fosse a verdade, somente a verdade, nada além da verdade. Ela o sacudiu. AAAH, gritou e pulou, dando nela um grande susto. Ele cai no chão e põe a mão na cabeça. Você não se sabe que não se acorda um sonâmbulo!
Ela sabia, mas sabia também que ele não era sonâmbulo. Havia seis meses que estavam juntos e ele nunca mencionou nada sobre ter tido um caso sequer de sonambulismo na vida inteira, redonda, achatada nos pólos. E ela nunca presenciara um.
Você anda bebendo de novo! Ele disse que não, que tinha mastigado dessa vez. Não sabia ao certo porque, mas sempre bancava o engraçadinho, mesmo em situações críticas. Ela lhe atirou um copo na cabeça, o copo que ela tinha bebido vodka com guaraná esperando ele chegar, até as quatro e meia. Doeu.
É a quarta vez essa semana que você chega bêbado em casa. Mas hoje é segunda, ele respondeu, e eu estou sóbrio. Ela ficou mais enfurecida. Ele sempre fazia piadas infames. Elas em geral não eram boas, mas ele continuava, mesmo falando para atirarem em sua testa depois de ninguém rir. Ele não falou desta vez, ela já tinha feito isso.
Começou a lhe escorrer sangue pela face. Nada de muito grave, mas foi o suficiente para deixá-la em pânico. A meu Deus! Você esta sangrando! E foi tudo culpa minha! Que tem Deus a ver com isso tudo, pensou ele? Achou melhor não fazer piada. Estou sentindo uma tontura, disse. Ele caiu. Ela caiu. Ela juntou-lhe o corpo e levou-o para a cama, cobriu-lhe os pés, buscou algodão, gaze, esparadrapo, álcool, água oxigenada, mertiolato e mais umas substâncias não identificáveis. Ela começou a limpar e ele perguntou, abrindo os olhos, para que tudo isso? Nosso filho caiu da bicicleta? Nós não temos um desses, seu bobo, respondeu ela, rindo do imbecil que amava. Não? Já pensou em fazer um?
Ele a agarrou e jogou para o outro lado da cama de meio-casal, porque a de casal era cara e além disso não cabia nas suas dependências. Pare seu idiota, deixa eu cuidar de você, você vai sujar todo o lençol de sangue! Ela esperneou um pouco, ele a segurou firme. Eu limpo depois, além disso, você também sujou na sua primeira vez, lembra? E foi bem mais que algumas gotas...
Ela sabia que ele não limparia nada, que ela teria que lavar tudo, e ainda estar de pé às oito horas, como secretária de cabeleireiro. Não se importou nem um pouco com isso. Não se importava com nada quando com ele, daquele jeito galante, e palhaço, e extrovertido, e abobado. Ele era dela, só dela. Ele mordeu-lhe os lábios, deu-lhe um beijo em sua maçã e disse-lhe que a amava. Pingou um pouco de sangue dele nela, no canto do lábio esquerdo. Ela disse que ele não a amava, que só dizia aquilo porque era cômodo ter alguém para transar quando chegava em casa, cansado; alguém que cozinhasse para ele, lavasse para ele, deixa-se a casa em ordem e... Ele a interrompeu com um longo beijo.
Então se lambuzaram em prazer... Depois disso ele começou a roncar. Bêbado inútil, ela resmungou com os olhos vidrados de paixão e com um sorriso maravilhoso estampado em sua cara. Fez o café, deixou em cima da mesa, colocou o despertador para a hora que o seu 'Don Juan' acordava para ir para a repartição, perto das dez da manhã. Deveria chegar as 11 no trabalho, que era perto. Ele se arrumaria rápido, ela pensou sorrindo. O café tinha bolachas, leite, ovos mexidos dentro de um pãozinho, e outro pãozinho com margarina e mel. Coberto de mel. Ele gostava. Ela estava atrasada, ia saindo as pressas, lembrando que deveria lavar o lençol a noite. Antes de sair deu uma última olhada em seu alcoólatra preferido. Um homem de barba rala na cara, deitado de bunda para lua. Roncava pouco agora, já havia parado de babar, mas o travesseiro ainda estava úmido. Deu um último suspiro, foi saindo, não sem antes dizer suas últimas palavras.

Bobo.