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28 janeiro 2007 

Esfolados

Ele saiu de casa pela manhã para fazer seus exames. Revisão normal, a cada seis meses, só para ver se estava tudo funcionando direito. Geralmente não estava. Fez os exames de sangue e urina pela manhã e marcou uma tomografia para à tarde. Era dez e meia da manhã quando saiu do hospital. Ele sentia-se num ambiente familiar, provavelmente passava tempo demais no hospital, mais do qualquer pessoa dentre as que não trabalhavam lá. Bom, talvez não mais do que o pessoal da UTI, mas vários dos atendentes e médicos lembravam-se dele de algum caso.

Saiu de lá e foi passear num shoping próximo. Eles abrem as dez. Esta certo que ele normalmente não levantava antes das dez, ou das dez para o meio-dia, mas sempre pensou que os shopings deveriam ficar abertos com todas as lojas funcionando 24 horas. Ou pelo menos abrir as oito, como o comércio normal. Claro, a única vez que trabalhou num shoping ele pegou o turno da tarde, então realmente não se importava com as pessoas que teriam de acordar duas horas mais cedo para trabalhar. Se ele morasse em uma grande cidade turística, os shopings funcionariam 24 horas. Talvez ele se mudasse pra uma. Ou talvez não, cidades turísticas são muito agitadas mesmo.

Foi na livraria. Não, não tinha livraria, ele foi à Saraiva Mega Store. Não dava pra chamar de livraria, não tinha o ar de livraria. Eles tem sofás para sentar e ler qualquer livro da loja, e um café também, ciber-café, aqueles locais com Internet e café, além de ter um lugar cheio de CD’s, DVD’s e alguns ET’s procurando músicas barulhentas. Isso tudo era legal até certo ponto, mas chegava uma hora que enchia o saco, não tinha clima de livraria, não como um bom sebo. E tinha muita luz, muitos corredores pequenos, as prateleiras deviam ser maiores. Em resumo, uma merda.

Ele pegou um livro pra ler apesar de tudo. Um desses autores modernos com nomes engraçados. Não tinham nomes de escritores, eram nomes engraçados. Não iriam durar uma década, nem mesmo um deles. Um livro de sucesso e acabou, ou às vezes nem isso. Alguns duravam mais um pouco, e esses eram os “grandes escritores da literatura atual”. Uma grande merda, isso sim. Guris de merda que não sabiam o que escreviam, e outros merdas que compravam e não entendiam, então estava tudo bem. Ele leu alguma coisa durante uma hora ou um pouco mais. Então teve fome, saiu para comer.

Passeou pelo shoping até a praça de alimentação. Luzes e músicas diferentes em todas as lojas, era engraçado de ver, tudo tão exagerado. Olhou umas roupas numa loja. Um vendedor lhe perguntou se tinha trabalhado na filial de capão da canoa. Não, nunca trabalhei em nenhuma praia, ele respondeu, mas passei o verão em capão várias vezes. O vendedor falou alguma coisa sobre ter achado o rosto familiar. Ele nunca tinha entrado na loja, e nem sabia da existência de uma filial na dita cidade. Não disse nada para não ficar chato, apenas saiu. As roupas eram bonitas, mas estavam caras demais todas, ele não queria tanto assim uma roupa nova.

Andou por toda a praça de alimentação sem vontade de comer nada, apesar da fome. Hora do almoço, todos naquele agito de comer, todos os lugares lotados, cheios de pedidos, cobrando absurdos por arroz, bife e umas fritas. Era demais pra ele. Saiu do shoping pensando onde ia comer, até que viu um carro de cachorro quente. Pediu um cachorro e um refrigerante. Foi para o meio de um parque com eles.

Passou umas quadras esportivas, uma pista de ciclismo e finalmente chegou num gramado verde. Grama verde, árvores verdes, tanto espaço aberto sem ninguém. Era tão bom. Ele sentou embaixo de uma grande árvore. Minutos depois viu que não tinha muita sombra e percebeu que estava sentado embaixo da única árvore morta. Enquanto todas as outras estavam verdejantes no final da primavera, ela estava lá, seca.

Ficou imaginando porque não ia mais vezes naquele lugar, um lugar tão bonito. Definitivamente iria voltar lá, pra ler um livro ruim ou algo assim. Acabou seu almoço tão vagarosamente quanto um bicho preguiça e pôs-se a descansar um pouco deitado no gramado. Cochilou por alguns minutos, então abriu os olhos e viu os galhos retorcidos da árvore morta. Fazia anos desde a última vez que subira numa árvore. Resolveu tentar a sorte.

Levantou-se, alongou um pouco os músculos completamente atrofiados devido à idade e ao sedentarismo e foi em direção à árvore. Uma mão, depois a outra, pensou ele, não deve ser difícil. Não conseguiu na primeira, nem na segunda tentativa. Somente na terceira conseguiu subir para a parte da árvore onde o tronco se dividia em três galhos mais grossos, que ao longo de seu comprimento se dividiam em algumas dezenas. Orgulhoso de ter subido na árvore e se sentindo dez anos mais jovem, subiu mais um pouco num dos três galhos mais grossos. Parou onde ele achou um conveniente espaço para encostar as costas enquanto admirava a paisagem do resto do parque, exatamente quando começava a sentir certo medo da altura. Sentiu uma pequena dor nos braços e de repente viu-os esfolados, com um mínimo de sangue neles. Ainda estava vivo afinal, pensou ele.

Ficou ali por um tempo, sem fazer nada. Olhando as formigas, o quanto elas sobem e descem à árvore morta, e o musgo que se criara nas partes mais úmidas. Olhou para as árvores em volta e para as pequenas coisas ao redor delas. Então ele viu ao longe a rua que separava o parque da cidade. Tantos carros passando, tanto barulho vindo de lá, tanta fumaça. E o shoping mais ao longe, estragando completamente a vista do horizonte. Era tudo tão belo na natureza, porque diabos o homem tinha que estragar tudo? Resolveu não pensar nisso, e deixar a coisa toda de ser idealista e tentar mudar o mundo para os mais jovens. Ele próprio já tinha tido a sua dose, e o mundo não mudou em nada.

De repente, prestou mais atenção ao detalhe de uma árvore. Um coração, daqueles com dois nomes dentro, gravados a canivete ou faca. Algo que não se vê mais com tanta freqüência, pensou ele, normalmente, foi substituído por pichações em paredes e paradas de ônibus com o mesmo propósito. Ficou imaginando de quem eram aqueles nomes... De quando eram? O casal ainda freqüentava o parque? Ou fugiram para a Europa com a moça grávida, para tentar a sorte de algum jeito? Será que eram dois jovens que acreditavam na existência de um amor eterno? Ou dois velhos brigando em um apartamento, sem se suportar e morando junto apenas por condições econômicas? Eles poderiam ter sido o mais romântico dos casais de sua devida época, ou talvez o garoto apenas escrevera isso para impressionar a moça, comê-la e jogar fora. Eram tantas as possibilidades. Ficou curioso e decidiu ver o nome do casal depois, só por curiosidade.

Ainda continuou mais um tempo ocioso em cima da árvore morta, até se entediar por completo e resolver se dirigir para o hospital. Desceu da árvore e ainda machucou mais um pouco os esfolados. Riu por um momento ao pensar na idéia de alguém com a sua idade com braços esfolados de subir em árvores. Então seguiu em frente seu caminho para o hospital, caminhando por meio aos carros e edifícios.

No hospital, fez sua tomografia e aproveitou para marcar um raio-x para um pouco mais tarde, pois tinha tempo. Após ambos os exames completos, deu tchau para Odete, Marilda e Claudia, as três enfermeiras que mais gostavam dele, de todas as sete que ele sabia o nome. Despediu-se também do seu urologista, que estava no plantão, como todas as quartas-feiras. Só então saiu do ambiente familiar e confortável que lhe era o hospital, e foi para sua casa tirar aquele cochilo das nove e quarenta da noite que o fazia dormir melhor mais tarde. Só quando deitou é que percebeu: havia esquecido completamente de olhar quais eram os nomes dentro do coração na árvore do parque, perto da árvore morta. Volto lá amanhã, pensou, e dormiu babando no travesseiro como uma criança de sete anos.

Simplesmente maravilhoso!
Quando eu pensava que ia acabar, e podia acabar, tinha mais um pouco. E continuava bom, incrível, não ficava entediante.
Coisas familiares nesse texto. Outras que deveriam ser e não são por preguiça.

É, maravilhoso.

Que bom que gostou do meu post!Acredite se quiser, mas eu escrevi inspirada nos seus!Afinal, foi minha primeira história, dae lendo as suas, me deu vontade de escrever!^^

E esse texto!Uau Uau!Mui bueno...soh queria saber se estou certa: mostrar o quanto as pessoas não notam as coisas simples da vida?As simples, que deveriam ser as mais especiais e importantes...?

Prometo passar sempre por aqui, será um prazer!

Outro daquele abraço...!

Ah!UOL realmente não é muito bom!Estava pensando esses dias em mudar, vamos ver se eu não esqueço!(Obrigada por me lembrar!)

Calvin!Comédia!^^

E ah!Vi sua irmãzinha no "Sugira um nome" (Aliás, posso sugerir um?)!E concordo, ela é linda!E gostei mais ainda em saber que ela se chama Sofia!Adoro esse nome!^^

Dois abraços!

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