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06 abril 2009 

Sapatos Azuis

- Cara, eu to coberto de sangue. Vem pra cá agora.

***

Eu estava voltado pra casa, andando na rua a cerca de umas sete quadras do meu apartamento quando o vi. Uma rua escura, com postes de luz afastados e não mais do que um por par de quadras, quase uma da manhã quando ele vinha na direção oposta. Eu tinha acabado de pegar a última sessão de cinema com a minha mãe e deixado ela no ponto de táxi. Nós vimos um filme qualquer sobre um drama idiota, nada de muito interessante e, diferente do habitual, eu e ela não havíamos brigado naquela noite. Ele tinha pele clara, mas mal se notava com toda a sujeira dele e a falta de iluminação. Caminhava com um jeito estranho, como se manco ou algo parecido. Provavelmente era só um mendigo maltrapilho que iria me pedir uns trocados para um trago, pensei. Não costumo negar trocados para outros beberem, sempre penso que um dia posso precisar que façam o mesmo por mim. Somente quando nos aproximamos que vi melhor sua silhueta, e que não caminhava daquele jeito por ser manco, parecia ter algo grande no bolso. Mau sinal, pensei. Ao acabar meu pensamento, ele já estava quase em cima de mim, tirando uma enorme faca de cortar carne da calça de abrigo.

Não sei ao certo como ou mesmo porque fiz o que fiz em seguida, mas de alguma maneira consegui segurar sua mão antes que me ameaçasse e dar-lhe um soco no queixo que o derrubou. No tombo, perdeu a faca e ficou atordoado, embora eu só fosse perceber isso depois. Em vez de correr para longe eu pulei em cima dele e comecei a bater na sua cara como um louco. Ele possivelmente já estava desmaiado após o sétimo ou nono soco, mas eu não parei. Continuei socando seu rosto como se não houvesse amanhã até estar com os punhos todos vermelhos e ter exaurido toda a força de meus braços. Usei os cotovelos por um tempo mais e então, sem o menor sinal de razão, peguei a faca que estava ao alcance de um braço e cravei-a no meio de seu abdômen até sua ponta chegar ao chão. Eu levantei e ele estava estirado no chão entre a rua e a calçada, com a cabeça encostada no paralelepípedo. Não tive dúvidas e sem um pingo de remorso, chutei sua cara distorcida contra o cordão da calçada. Devo ter feito isso por uns dois minutos seguidos, apesar de não ter muita noção de quanto tempo se passou no ocorrido. Certamente parecia não acabar nunca. Não parei nem mesmo quando ouvi o “cleck” dos ossos quebrando. Quando finalmente cansei, tirei meu pé de onde outrora houvera um rosto humano. Agora, havia apenas um crânio partido e sangue por todos os lados, com pequenas partes de carne espalhadas, e algo que a meia luz não dava pra saber direito o que era, se um olho ou um pouco de cérebro. O impacto com o cordão da calçada tinha quebrado a parte de traz de sua cabeça, e a mandíbula se encontrava a uns dois metros dali. Eu olhei aquilo com as mãos na cabeça, sem compreender uma vírgula do que havia acontecido.

Sem pensar, decidi sair dali. Estava a algumas quadras da minha casa, poderia ir pra lá e tudo ficaria bem. Com as mãos tremendo tirei um cigarro de um maço esmagado em meu bolso. Somente quando o levei ao rosto para acendê-lo que vi minhas mãos nas chamas do isqueiro que percebi o meu estado. Minhas mãos estavam mais ensopadas que as luvas de um açougueiro. Meus sapatos estavam cobertos por uma nova cor cobrindo o azul e branco original, e o que eu achava ser suor no meu rosto tinha uma consistência diferente. Tentei limpar o rosto com a camiseta branca que eu estava usando, somente para descobri-la encharcada de um vermelho escuro e ferroso. Eu estava coberto de sangue.

Perplexo diante do meu estado, fumei meu cigarro escondido em um canto com medo de que me achassem. Estava com sorte, se é que se pode dizer uma coisa dessas, de ninguém ter passado por ali. Decidi que voltaria para a casa do mesmo jeito, evitando as ruas de maior movimento e de policiamento óbvio. Tentei sem muito sucesso limpar o sangue do rosto e segui em frente, ficando sempre na calçada mais escura. Não demorou muito eu tive que cruzar uma esquina atulhada de pessoas bebendo ao redor de um bar. Por sorte eram todos jovens muito focados em suas cervejas e baseados, ocupados demais para me notarem passando do outro lado da rua. Não fosse o barulho que eles faziam, poderia acordar os moradores das casas próximas com as batidas exageradas de meu peito nervoso enquanto esperava por um grito de denúncia. Mais três quadras caminhei por entre ruas mais escuras, fazendo um caminho maior do que o normal para evitar qualquer avenida. Somente uma mulher me viu nesse caminho e, horrorizada, correu para o outro lado da rua com a bolsa e o coração nas mãos. Eu estava fadado a ser visto, porém, à medida que me aproximava da movimentada rua cheia de bares onde morava.

Quando cheguei à esquina de minha quadra vi alguns rostos incrédulos dos poucos passantes, graças à maldita rua iluminada, e soube que não podia ficar ali por muito tempo mais antes que alguém chamasse a polícia. Caminhei rápido tentando não correr ou chamar a atenção, mas não pude deixar de notar as conversas parando e os olhares voltando-se para mim à medida que me aproximava do meu prédio. Tive que caminhar por meia quadra, e foi a pior meia quadra de minha vida. Com as mãos trêmulas eu falhava ao tentar botar a chave na maldita fechadura do portão, sempre com a sensação de que a qualquer momento alguém me algemaria e me levaria para a delegacia. Quando finalmente entrei no prédio foi como se tivesse tido um breve orgasmo de satisfação. Não durou muito, porém, já que enquanto eu subia o primeiro lance de escadas eu ouvi vozes e passos vindo dos andares mais de cima. Corri para que conseguisse chegar ao apartamento antes de cruzar com alguém no corredor, subi o segundo lance de escadas a três degraus por vez para chegar ao meu andar. A maldita fechadura emperrada não abria normalmente sem muito jeito, e com o desespero que me tomava conta não havia jeito de abrir à medida que o som dos vizinhos descendo as escadas e conversando se aproximavam cada vez mais de meu andar. Quando estava quase no ponto de arrombar minha porta consegui, por fim, abri-la, e mal tive tempo de ver as sombras deles chegando no momento em que fechava a porta com um sonoro estrondo. Somente então, em casa, com a luz acesa, em frente ao espelho da sala, pude ver meu verdadeiro estado. Não era nada bonito.

Eu havia limpado um pouco o sangue da cara embora ela ainda estivesse meio manchada. A camiseta impecavelmente branca estava tão suja que quem olhasse pensaria que eu que havia levado uma facada no abdômen. No pescoço e nos braços o sangue ainda estava meio pastoso, e havia até mesmo um pouco coagulado em partes de minha barba. A calça era certamente escura e ajudava a esconder um pouco na noite, mas à luz plena percebia-se perfeitamente que ele era mais escuro. Os sapatos, principalmente o direito, não tinham quase nenhum resquício de azul ou branco em suas superfícies. Eu então chorei. Depois, ri por uns minutos e chorei um pouco mais, em choque.

Não tenho certeza que tanto medo eu tinha de ser pego. Eu não iria passar muito tempo na cadeia com um bom advogado, já que o ato poderia ser considerado em legítima defesa, mas devido às circunstâncias do ocorrido e do estado do falecido, provavelmente me colocariam em alguma instituição de acompanhamento psicológico por um bom tempo até terem certeza que eu poderia conviver em sociedade. Obviamente, não pensei em nada disso no momento. A única coisa que pensei após o surto de risos e choros, foi na maldita faca.

Aquela faca tinha minhas digitais, e provavelmente o corpo também. Eu comecei a entrar em pânico pensando em ir para de trás das grades, e definitivamente tinha que voltar lá. Não no estado em que estava, e provavelmente não sozinho. Tinha que ter alguém caso já estivessem em volta do corpo, para que eu pudesse ter uma desculpa de estar lá, e quem sabe um álibi para o ocorrido. Ainda tremendo alcancei o telefone celular para ligar para um de meus melhores amigos que morava não muito longe dali, e tinha um carro. Tive que discar e apagar o número três vezes até conseguir acertar, visto que não tinha a menor condição de procurar algo na agenda do telefone. Chamou até cair na primeira vez. Na segunda, ele atendeu.

***

-Alô, Fred? Sim, eu sei que é tarde. É, tu trabalha amanhã, eu sei. Mas cara, tu ainda tem aquela chave do meu ap? Não pergunta porra, tem ou não? Ta, vem pra cá, te explico quando tu chegar caralho, não posso abrir a porta do prédio. Cara, eu to coberto de sangue. Vem pra cá agora.

Estou chocado...
Me escreve e me conta o que está acontecendo...

bom. bom.
vou ler o de baixo agora.

tive que fumar um cigarro pra conseguir ler o texto.

mas na boa, to vendo o melhor episódio de family guy do mundo. embora não seja esse o nome do seriado.

Este comentário foi removido pelo autor.

Nossa, quase vomitei na discrição do espancamento, e fiquei tão tensa que prendi a respiração no caminho de volta pra casa.
Se é verdade ou não, nem sei dizer, acho até que é possível..hehhee
mas ta muito bem escrito, parabéns!

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