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23 fevereiro 2007 

Libertação

“trim trim.”

Ele despertou devagar. Na cabeça ecoava o som estridente. Virou-a lentamente, tudo girava graças ao porre da última noite. Olhou para o relógio.
“trim trim.”

Dez horas da manhã. Sábado. Ninguém deveria acordar antes do meio-dia no sábado. Deveria ser proibido. Toque de recolher às oito da manhã e lei de silêncio até o meio dia. Todos os aparelhos barulhentos, carros, relógios, pessoas, todos desligados.
“trim trim.”

Especialmente telefones. Que tipo de imbecil telefonava para alguém sábado as dez da matina? Que tipo de imbecil telefonava para ele a essa hora? Sentou-se na cama.
“trim trim.”

O sol entrava pela janela direto no sou rosto. Sol filho da puta, ele resmungou. Pôs seus chinelos. Coçou o saco. Acostumou os olhos apertados.
“trim trim.”

Nunca lembrava de desligar a droga do telefone antes de sair, tampouco quando chegava bêbado. Pensou em colar bilhetes para ele próprio, pois vivia esquecendo das coisas, mas, apesar de ter comprado papeizinhos auto-adesivos para os ditos, nunca lembrava de escrever um só que fosse.
“trim trim.”

O barulho já estava lhe fazendo a cabeça rodar. O barulho e a ressaca. Atendeu e disse:


-Espere.


Levantou-se. Alguém falava algo do outro lado, mas o braço com o telefone pendia ao lado do corpo, longe demais para que ele escutasse qualquer coisa. Foi até o banheiro, largou o telefone sobre a pia e a pessoa do outro lado ouviu um forte estrondo. Ele levantou a tampa do vaso com a calma e a graça de um gato gordo, botou seu pau para fora e começou a mijar. Deve ter mijado um litro antes de finalmente dar a descarga e lavar as mãos. Secou-as.

Pegou um cigarro do maço do banheiro. Tinha um ou mais maços espalhados pelas peças do apartamento. Isso evitava que tivesse que sair da privada ou de perto do fogão ou mesmo levantar da cama quando queria fumar. O mesmo valia para fósforos. Detestava isqueiros.
Riscou um fósforo e acendeu o cigarro. Deu uma longa tragada, daquelas de comerciais de TV, e soltou calmamente a fumaça. Pegou o telefone.


-Fale.
-Alô, Moacir? Porra, você me deixou esperando meia hora nessa merda de telefone!
-São dez e treze. O telefone tocou as dez em ponto, eu atendi as dez e quatro, então você está esperando faz míseros nove minutos. Porque me acordou seu bosta? Sabe que não levanto antes do meio-dia aos sábados. Normalmente só depois das duas.
-Preciso de um favor seu, cara.
-E o que diabos não pode esperar até as duas da tarde e tem que me acordar a essa hora, Cláudio?
-Você precisa vir pra cá, cara.
-Vai à merda.
-Sério cara, tou encrencado, preciso da tua ajuda.
-Porra, ta, em uma hora tou ai.
-Uma hora!? Não da pra chegar antes? É perto!
-Não fode. Uma hora. Vou me apressar, mas antes disso não chego.
-Tá legal, tou te esperando.


Moacir desligou. Atirou o telefone na cama. Olhou-se no espelho e espremeu uma espinha a direita do queixo enquanto segurava o cigarro nos lábios. Foi até a cozinha e bebeu um copo d’água. Abriu a geladeira, queria fazer uma omelete. Estava sem ovos. Comeu um sanduíche. Ele fazia vários de uma vez e os deixava prontos na geladeira, em uma bandeja. Fazia dois pacotes de pão por vez. Usava para fazer torradas ou comia-os assim, com presunto e queijo. Ainda tinha sete da última remessa.

Foi até a sala, parou em frente ao aparelho de som. Antigo, havia herdado de seu pai, Ernesto, tocava vinil e fita cassete apenas. Tinha quatro caixas de som grandes e potentes, uma em cada canto da sala. Alguns vizinhos o detestavam por isso. Mas fora a música alta ele era um rapaz simpático. Além de que, nunca ligava o rádio alto antes das dez da manhã, pois estava dormindo, nem depois das dez da noite, pois normalmente estava na rua. Havia acoplado um pequeno aparelho ao som, para tocar os poucos CD’s que tinha, não mais que quinze seguramente. Apreciava vinis, herdou a paixão do velho pai. Escolheu um vinil dentre seus preferidos, todos os de Mozart. Sempre preferiu Mozart a Ludwing. Dançou um pouco como um bailarino louco, por uns quatro minutos de música.

Largou o toco no cinzeiro da sala. Ele também tinha um cinzeiro em cada ambiente, tal quais os cigarros e os fósforos. Pegou uma toalha na gaveta das toalhas. Tinha cerca de quinze toalhas, todas azuis, nunca as repetia sem estarem limpas. Lavava-as normalmente na segunda à noite. Foi ao banheiro, despiu-se das cuecas e entrou no chuveiro. O banho morno, nem quente nem frio, não importava se era verão ou inverno. Era primavera. Banhou-se e saiu do chuveiro. Secou-se, acendeu outro cigarro. Logo vou ter que botar outro maço no banheiro, pensou. Foi nu até a sala, virou o disco. Na cozinha, abriu a geladeira e comeu mais um sanduíche, nu em frente à porta aberta. Nunca se resfriava.

Caminhou, saltando às vezes no ritmo dos violoncelos da música, até o quarto. A ressaca havia passado depois do banho, pelo menos parte dela, e ele aumentou a música no caminho. Escolheu a roupa cuidadosamente. Sandálias de couro, calça branca de algodão, camisa azul claro, da mesma cor das toalhas. Pensava se ia de chapéu ou não. O tempo estava nublado, acabou por colocar um colar budista que era de sua mãe. Na sala, guardou o vinil na caixa, depois desligou o aparelho. Girou a chave de casa as dez e cinqüenta e sete. No corredor deu bom dia a vizinha a qual ele não sabia o nome, mas sempre cumprimentava. De pé tão cedo Moacir? Ele respondeu com um sorriso simpático, e uma cara de quem diz: pois é, tu vê só. Desceu pelo elevador antigo

Pela calçada, andou despreocupado com o resto do mundo, sendo quase atropelado por um fusca vermelho ao atravessar à rua. Caminhou por cinco quadras até chegar a uma pequena feira de produtos agrícolas, onde comprou uma dúzia de ovos. Andou por mais duas quadras e então teve preguiça de caminhar o resto do caminho e pegou um táxi para percorrer os poucos quarteirões restantes. Pagou o táxi, três reais e cinqüenta, e desceu indo de encontro ao prédio de Cláudio.

Tocou o apartamento 202 e esperou. “Quem é?” perguntou uma voz nervosa ao interfone. “Sua mãe, agora abre essa droga, Cláudio”. Cláudio apertou o botão para abrir a porta e Moacir entrou no prédio. Subiu as escadas visto que não havia elevador no prédio. Terminou a subida ofegante, levando a mão ao peito com muita dificuldade para respirar. Acendeu um cigarro. Bateu a porta de Cláudio. Está aberta, ouviu-o gritar de dentro. Entrou e fechou a porta atrás de si, girando a chave exatamente as onze e trinta e dois. Caminhou para dentro da sala de estar e, ao sentir um cheiro estranho, falou:


-Cláudio, o que você andou cozinhando aqui? Esta merda de apartamento esta com um cheiro horrível.
-Como se você sentisse muitos cheiros com esse seu nariz de perdigueiro! Você fuma desde seus treze anos Moacir! – gritou Cláudio do banheiro.
-Sério cara, esse lugar está fedendo. Tem algum bicho morto por aqui?
-Tem.


Nesse exato momento Cláudio saiu do banheiro apontando uma Sig-Sauer P220 com silenciador para o meio da testa de Moacir. Um único tiro para que ele, que vinha de frente em direção ao banheiro, caísse de costas no assoalho, derrubando a sacola com ovos. Cláudio resmungou alguma coisa sobre os ovos e limpou a sujeira deles, colocando-os no lixo. Em seguida pôs o corpo de Moacir em um grande saco plástico e arrastou-o para o segundo quarto, o que não era o dele, onde havia mais sete sacos pretos semelhantes, dos quais saia um forte odor de decomposição. Ele limpou o sangue panos úmidos e seguiu para o seu quarto. Parou na frente da mesa de cabeceira e pegou um pequeno caderno azul e uma caneta. Pôs-se a escrever:

“Querido diário, o psicanalista tinha razão. Jamais poderia me suicidar sem pensar em como ficariam meus amigos e parentes próximos, o quanto eles sofreriam com tudo isso simplesmente por eu ter resolvido ‘escapar dos meus problemas’. Seria simplesmente muito egoísmo de minha parte ficar livre de todo esse mundo decadente e deixá-los aqui para apodrecer nesse lugar o resto de suas vidas. A cada um que passa fica mais fácil. A única que deu trabalho foi a minha mãe, ela realmente não queria morrer, coitada. Tenho certeza de que vai me agradecer mais tarde, quando eu a alcançar. Apenas mais alguns dias, alguns poucos amigos com os quais eu realmente me importo para tirar daqui e então seremos todos livres. Todos!”

Levantou calmo e deixou o diário em cima do travesseiro, na cama. Alongou as costas e deu um longo bocejo para relaxar os músculos. Foi até o telefone e discou um número.

“tuuu”

“tuuu”

“tuuu”

-Alô, Dorinha?


=O
POsso me surpreender fácil com certas coisas, mas com textos sou bem rígida!
E você mais uma vez me surpreendeu e mostrou o quanto escreve bem!

A cada linha, a ansiedade pelo final crescia.Sabia que imaginei que o tal Cláudio havia matado alguém "sem querer" e tinha chamado Moacir ali para ajudá-lo a esconder o corpo?Dae tu vem e muda a história da minha mente!Incrivelmente lindo!

E engraçado!Gostei mesmo do final!

Beijo caramelizado!

Eu não me surpreendo fácil!
AI MEU DEUS, UM CARRO AZUL!





Um dos melhores contos que já li.

continua sendo um dos melhores textos que já li.

esse sim é foda. e ninguém paga pau pra ele, bando de gente estúpida ¬¬

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